O papel da iniciativa privada no futuro de Portugal
Economia social com uma missão cada vez mais relevante
Num contexto de escassez crescente de recursos públicos e de novas prioridades como o investimento em defesa, torna-se evidente que a verdadeira sustentabilidade social de Portugal dependerá cada vez mais do papel do setor social e do financiamento privado. A filantropia tradicional continuará a ser essencial, mas deve ser complementada por mecanismos de investimento de impacto que tragam eficiência, escala e compromisso de longo prazo. Fortalecer a economia social, apoiar organizações que estão no terreno e incentivar financiadores a assumirem estratégias claras e focadas são passos cruciais para garantir que direitos fundamentais como saúde, educação, habitação e envelhecimento digno não ficam comprometidos.
Recursos públicos deteriorizados coloca em causa direitos sociais e económicos
Vivemos tempos de incerteza, mas sobretudo de escassez de recursos públicos para enfrentar o crescente número de problemas socioeconómicos, tanto a nível global como nacional. Num país com uma forte herança social como Portugal, assistimos hoje a uma mudança no discurso público no que toca às prioridades e à disponibilidade de capital para financiar o acesso a direitos estabelecidos na Constituição. Vemos diariamente demasiados cidadãos impedidos de aceder a direitos económicos e sociais como por exemplo o acesso à habitação, a cuidados de saúde ou à educação pela incapacidade do Estado financiar as condições necessárias para que tais direitos sejam plenos e acessíveis a todos.
As implicações a nível social de priorizar investimento em defesa
Um dos temas centrais da atualidade é a defesa. Portugal comprometeu-se perante a NATO a alocar 5% do PIB a esta área até 2029. Este compromisso implica uma de duas opções: aumentar impostos (sobrecarregando as famílias e as empresas), ou cortar substancialmente noutros setores estruturais.
Não pretendo aqui emitir uma opinião relativamente à necessidade de se investir ou não em defesa. Apenas quero utilizar este tema, hoje tido como uma prioridade, para exemplificar como os nossos recursos públicos, que são já insuficientes para responder a todos os direitos sociais, se tornarão cada vez mais escassos, tentando então realçar como o financiamento privado e o trabalho das entidades da economia social são e continuarão a ser cada vez mais importantes ao equilíbrio social como complemento das soluções públicas. Faço então uma reflexão não só sobre a importância do setor social como também sobre algumas das abordagens que o permitirão reforçar.
Para termos então noção da escala e das implicações do nosso compromisso em defesa, 5% do PIB significa um compromisso total de mais de 14 mil milhões de euros a serem investidos na indústria da defesa. É importante considerar que a despesa pública Portuguesa em 2024 foi cerca de 35-40% do PIB . Assim, falar de 5% do PIB é na verdade falar de 10-15% da despesa pública nacional o que implica necessariamente cortes da atual despesa pública noutras rúbricas estruturais da nossa sociedade.
A título de comparação, em 2024 o previsto para despesa pública noutras rúbricas foi:
- Saúde: 19% da despesa pública | 17,3 mil milhões €
- Educação: 12% | 11,1 mil milhões €
- Proteção Social: 15% | 13,5 mil milhões €
Considerar uma diminuição de investimento em quaisquer destas áreas para fazer face ao investimento em defesa implica necessariamente sujeitarmos os cidadãos a serviços públicos ainda mais precários em vez de melhores em qualidade e em acesso, num dos países que hoje é já um dos mais envelhecidos e pobres da União Europeia. Atrevo-me, por isso, a dar o salto lógico de que esta nova prioridade tenderá a contribuir para o aumento dos difíceis problemas sociais que enfrentamos hoje.
A importância da iniciativa privada na economia social
No debate público alargado aquando do tema da escassez de recursos públicos fala-se frequentemente do papel da iniciativa privada em várias áreas da nossa economia como solução mas não é frequente falar-se com um tom de esperança da iniciativa privada focada no trabalho das organizações do terceiro setor – aquelas que estão no terreno a combater as lacunas sociais que a economia e o setor público deixam, e que trabalham quase sempre na sombra.
Empoderar e fortalecer o setor social que em 2021 era representado por cerca de 68,000 entidades exige financiamento e recursos diversificados e os investidores sociais, isto é, empresas e fundações, têm um papel crucial para colmatar a escassez de financiamento público. Embora já falemos sobre investimento de impacto, ou seja, mecanismos de financiamento de soluções de impacto social que integrem retorno financeiro e de impacto, há mais de 15 anos em Portugal, o setor social é ainda principalmente financiado pela filantropia tradicional.
A filantropia tradicional ocupa um lugar demasiado relevante para sequer questionarmos a sua substituição por algo diferente. Não é disso que se trata quando falamos de investimento de impacto. A relevância do investimento de impacto é poder complementar a dinâmica de financiamento atual. É poder trazer novos incentivos para a eficiência (gestão de recursos) e eficácia (resolução dos problemas) de algumas organizações no terreno, e por outro permitir que novos investidores e mais capital sejam mobilizados para causas sociais.
Contudo, para além de falarmos em instrumentos de financiamento que complementem a oferta de filantropia tradicional, interessa também refletir sobre a forma como os financiadores sociais, e em particular as fundações se podem (e devem) posicionar em termos estratégicos de forma a assumir o papel que a sociedade necessita.
Investidores sociais mais investidos na resolução dos problemas sociais
Os problemas sociais são complexos e profundos e como tal, é fundamental que existam estratégias coesas e de longo-prazo para os combater. É comum esperarmos das organizações sociais este compromisso de longo-prazo na dedicação à sua missão, também ela focada num problema concreto. No entanto, do lado dos financiadores existe ainda alguma dispersão de temáticas de interesse e pouca estratégia no seu posicionamento enquanto atores que contribuem para resolver os principais problemas da nossa sociedade.
Uma estratégia focada em problemas concretos e bem-definidos permite aos financiadores estudar os problemas e quantificá-los, definindo aquilo que é a ambição de contribuição enquanto financiador para a resolução dos mesmos. Tal como é esperado que uma organização social saiba medir o impacto da sua atuação através de uma métrica concreta, seria benéfico que os financiadores também o fizessem, de forma a conseguirem ao longo do tempo gerir o seu impacto.
Uma organização social trabalha com um horizonte temporal longo e quase sempre indefinido – pois os financiadores trabalhando lado a lado das organizações, beneficiariam o ecossistema se assumissem também eles um compromisso de longo-prazo na luta estrutural por determinado problema social, em vez de desenvolverem programas de financiamento de curto-prazo como ainda é possível observar.
Uma organização social deve conhecer bem os seus beneficiários, idealmente desenvolvendo um serviço focado em resolver as causas do problema social existente. Como tal, um financiador social deverá também estudar bem as entidades sociais que serve e com quem colabora de forma a desenvolver uma oferta de serviços financeiros e não financeiros adequada às suas necessidades – reforçando assim a estrutura social existente.
O caminho faz-se caminhando e defender Portugal depende de todos
Na maze, enquanto entidade que trabalha tanto com organizações sociais como com financiadores sociais, testemunhamos os desafios de financiamento que existem no ecossistema e observamos com privilégio a tendência dos financiadores se desafiarem a tornar cada vez mais estratégicos e intencionais na sua atuação. Alguns exemplos concretos de fundações que estão neste caminho e com quem temos trabalhado são a Fundação Calouste Gulbenkian muito focada em soluções nas áreas do ambiente e exclusão social, a Fundação Ageas focada na saúde e envelhecimento e a Fundação Santander focada na educação.
Enquanto Portugal se prepara para investir milhares de milhões em defesa, não podemos esquecer que a verdadeira defesa de uma sociedade está na sua coesão social. O combate à pobreza, o envelhecimento digno, a educação e a habitação acessível são os alicerces da nossa estabilidade e como tal, estaremos deste lado a trabalhar tanto com organizações sociais como com financiadores sociais de forma a continuarmos este caminho de mais e melhor estrutura e impacto positivo.
Na maze, é esta defesa social que nos move. Contribuir para desenvolver soluções que resolvam os grandes problemas da nossa sociedade é a nossa principal missão. Se tiver interesse em saber mais sobre o trabalho que fazemos com fundações e parceiros filantrópicos, entre em contacto através de rita@maze-impact.com.
Referências
https://pt.countryeconomy.com/governo/pib/portugal
https://transparencia.gov.pt/pt/orcamento-do-estado/previsao/despesa-receita-previsao/